domingo, 24 de fevereiro de 2013

Pontuação, paragrafação e coerência


no processo de construção de textos infantis
Fernanda Freitas
(UERJ)
Durante muito tempo, o ensino de língua materna priorizou a gramática normativa em detrimento de um trabalho voltado para a produção textual. Os poucos textos produzidos na escola, além de não serem vistos com a seriedade necessária, na maioria das vezes, constituíam o último recurso utilizado pelo professor como atividade produtiva.
Hoje, diferentes abordagens levam o texto para a sala de aula, valorizando o elemento-chave da comunicação escrita. Essa nova realidade traz para o cotidiano escolar algumas questões, antes não abordadas nos livros didáticos e nas aulas de Português, agora necessárias para uma produção de texto satisfatória. No entanto, com o nítido avanço do ensino de leitura e produção de textos, aplicar essa prática não é tarefa simples na medida em que a maioria dos docentes, em sua formação, não foi incentivada a planejar situações didáticas que objetivem a análise e a reflexão sobre a língua, portanto, falta suporte àqueles que se propõem a ensinar a “boa” escritura.
Na tentativa de contribuir nesta direção, este trabalho traz uma pequena parcela de um estudo realizado no ano de 2004 com crianças que se preparavam para ingressar na 5ª série do Ensino Fundamental em instituições públicas que tinham como parte do processo seletivo uma redação. O foco da pesquisa foi a pontuação aliada à paragrafação e à coerência, considerando-se que esses elementos têm papeis fundamentais na construção de textos.
Relato das atividades
Para iniciar a pesquisa, o primeiro passo foi uma conversa informal com as crianças e posterior escritura sobre o que se entende por pontuação. Para exemplificar, aqui estão os relatos de cinco alunos:
ALUNO 1
Para que usamos o ponto
Cada ponto serve para utilidades diferentes, como por exemplo:
.
todas as vezes uso o ponto final para terminar a frase que estava escrevendo: ex. Joana é bonita. Chistine quebra seus brinquedos.
,
Utilisamos a virgula para dá uma pequena pausa no texto
:
serve para citar muitos ex ou coisa que é usada a virgula.
ex: hoje comi banana, macã pera e abacaxi.
O aluno só menciona três sinais e apresenta exemplos dos dois primeiros, mas não do último. Um detalhe que desperta a atenção é que, para definir a função dos dois pontos, ele precisa falar do uso da vírgula em enumerações, mas não menciona esse uso quando cita esse sinal logo abaixo.
ALUNO 2
Em que eu uso os pontos
Sempre uso os pontos. Com a virgula eu uso quando paro para pensar, ou para falar mais do que duas coisas, ex: Fui na feira e comprei banana, maçã, pêra, abacaxi e uva. Uso o ponto final quando vou falar outra coisa, ex: Fui passear. Este dia estava chuvendo. Uso o travessão para indicar uma fala, ex: – Mãe, vamos sair? Uso o ponto de interrogação quando vou interrogar uma pessoa, ou seja, faço uma pergunta, ex: Vamos sair? Uso o ponto de exclamação quando to exclamando, um espanto, uma surpresa, ex: Que lindo! Uso os dois pontos para dizer alguma coisa, ex: Ele disse:

Diferentemente do aluno 1, esse não faz uma separação em tópicos, o que foi justificado por ele pelo fato de tratar-se de um assunto só: a pontuação. Quando diz: “falar mais do que duas coisas”, refere-se ao uso da vírgula para enumerações, o que o aluno 1 omitiu. Além disso, o aluno 2 apresenta um maior número de sinais, preocupando-se em exemplificar todos os usos.
ALUNO 3
Pra que serve a Pontuação
Serve para mudar de acunto, para afirma e parar e botar virgula pra falar outra coisa.
Por isso existe ., ?, !,, e parágrafo,
O ponto de afirmação é para afirmar o que você fala.
O ponto de interrogação é prá quando você tiver interrogando.
O ponto de exclamação é para exclamar alguma coisa
O travessão e quando você vai falar com alguém.
A vírgula é prá quando estiver falando alguma coisa ele muda.
O parágrafo é usado quando muda de assunto
Ex: A caneta caiu no chão.
O boi comeu capim.

O aluno inicia apresentando uma visão geral do uso da pontuação, apresenta os sinais em seu aspecto gráfico e só depois parte para a discriminação deles.
Vale observar que o aluno 3 é o único que menciona o parágrafo e, na apresentação deste, sente necessidade de exemplificar, o que não fez nos outros casos. Vê-se, pelo exemplo, que a noção de parágrafo é totalmente distorcida e resultante do discurso de muitos professores.
ALUNO 4
Pontuação pra quê?
A vírgola é para dar uma pequena pausa, o dois pontos quando o personagem vai falar, o travessão indica a fala do personagem, a interrogação é usada quando alguém faz uma pergunta, a exclamação quando alguém fica feliz, espantada, etc, e o ponto final como eu vou usar agora serve para fechar uma redação por exemplo.

Como os outros, o aluno 4 faz uma listagem dos sinais conhecidos por ele e procura, de maneira simplificada, explicar seu uso.
ALUNO 5
A pontuação
A pontuação é uzada para dar cintido as palavras ou as frases, por isso que quando nos lemos um livro concegimos entender oque o altor quer pasar para nos quando lemos um livro.
FIM
Nota-se que as declarações são muito semelhantes, com exceção da última, que é a única em que o aluno não lista os sinais de pontuação e suas funções, mas dá um esclarecimento mais geral e menciona a questão do entender, do sentido, falando de autoria, como se a pontuação fosse uma forma de o autor do texto passar a sua mensagem.
Para entender melhor os comentários dos alunos, o segundo passo foi a investigação dos manuais didáticos. Qual é o suporte dado aos professores para trabalhar com tal conteúdo? O que os alunos recebem nas salas de aula?
Analisando os livros didáticos, é evidente o fato de eles tratarem a pontuação de forma bem superficial e, na maioria das vezes, apresentarem definições que levam em consideração mais de um critério, o que dificulta bastante a compreensão.
Dentro da Língua Portuguesa, a questão da pontuação sempre foi fundamentada em três critérios: o fonológico, o sintático e o semântico. Apesar disso, por bastante tempo, a pontuação foi vista somente como uma questão de prosódia, o que muito prejudicou seu aprendizado. A falsa idéia de que os sinais de pontuação representam as pausas da fala foi o discurso de diversos professores de Língua Portuguesa durante anos. Hoje, já se sabe que tais sinais não só indicam fatos entoacionais como estabelecem relações sintático-semânticas, mas a questão da prosódia permanece enraizada, causando uma série de enganos.
Para exemplificar aqui o que foi constatado, vêm a seguir duas definições da vírgula segundo autores de gramáticas escolares:
Na Gramática Essencial Ilustrada (SACCONI, 1999: 359), o tratamento dado à pontuação peca pela superficialidade. O único sinal que aparece em toda a gramática é a vírgula e o critério fonológico é claramente privilegiado. A definição da vírgula é dada como “um sinal que serve para indicar pequena pausa na leitura, mas sobretudo mudança de entoação.”
Outra gramática escolhida foi Gramática – Teoria e exercícios (PASCHOALIN e SPADOTO, 2000: 402-3), em que as autoras, na abertura do capítulo dedicado aos sinais de pontuação, anunciam a correspondência entre língua oral e escrita: “Os sinais de pontuação são recursos típicos da língua escrita porque esta não dispõe do ritmo e da melodia da língua falada. É, pois, a pontuação um meio de representar, na escrita, as pausas e entoações da fala. Sendo assim, não há critérios extremamente rígidos quanto ao uso dos sinais de pontuação.”
Na definição da vírgula, isso se confirma: “(...) marcando uma pequena pausa, é geralmente usada (...)”
Com definições como essa, o aluno é induzido a fazer a relação entoação/pontuação, não levando em conta os critérios sintático, semântico e até mesmo estilístico, que pode fazê-lo perceber as diferenças entre os escritores, e as possibilidades de criar sentidos por meio da pontuação. O fundamental é que o aluno perceba que a escrita é a união de idéia e forma em equilíbrio e se a pontuação tem a função de organizar, sua importância no texto é indiscutível.
É nesse ponto que os sinais de pontuação vinculam-se aos parágrafos, na medida em que neles se realizará o processo de organização e coerência textual.
Para verificar aqui o uso dos sinais nos textos produzidos pelos alunos, serão vistas três redações feitas em sala de aula. Dos diversos aspectos que foram observados ao longo da pesquisa, nesses três casos a atenção estará voltada para o ponto ligado à delimitação do parágrafo e o travessão referente à demarcação de turnos de fala.
Os dois textos seguintes foram produzidos a partir de uma história em quadrinhos sem balões de fala e neles vale observar o papel do ponto.
O desastre do restaurante
Magali foi a um restaurante com sua mãe e seu pai e estava passeando enquanto a comida não saía. Ela estava conhecendo o restaurante melhor então ela esbarrou no garçom mas conseguiu pegar as bandejas os pratos e os copos. Quando o garçom foi pegar os pratos e as bandejas ele se atrapalhou e jogou tudo no chão e aí então ela não conseguiu pear tudo de novo.

Na redação, o aluno não faz a divisão de parágrafos e utiliza somente o ponto final. Observando os quadrinhos nos quais ele se baseou, nota-se que o ponto final aparece no fim de grandes rupturas da história: a primeira quando ela resolve passear, a segunda que ilustra o encontro com o garçom e a vitória por conseguir pegar as bandejas e, por fim, o desfecho, quando os pratos caem novamente.
É interessante notar que ele se limita ao ponto, pois nem a vírgula “pra dizer mais de uma coisa”, muito comum em textos infantis, foi usada em “as bandejas os pratos e os copos.”.
A Magali
Em uma noite linda magali foi ao restaurante, comeu, comeu, comeu e comeu Magali nunca viu tanta comida gostosa seus pais não poderam pagar tudo bom magali teve que lavar os pratos e copos.
Quando ela passava para ir embora o garsom vinha passando e a coitada da magali se chocou com o garson os prato sairam voando a magali por incriveu que paresa ela pegou os pratos um por um e todos aplaudiram derepente ela perdeu o controle e dechou todos cair no chão bom a magali saiu correndo do restaurante.
FIM

Diferente do primeiro, ele separa a história em dois momentos, dividindo-a em dois parágrafos: um que pode ser considerado uma introdução, já que apresenta a personagem e localiza a narrativa em tempo e espaço (em uma noite linda e no restaurante); e um segundo em que ele sintetiza a complicação, o clímax e o desfecho sem qualquer separação dessas partes por meio da pontuação, o que compromete bastante a leitura desse texto por alguém que não tenha visto os quadrinhos, ou seja, a coerência foi abalada.
Como o primeiro aluno, ele usa o ponto final para delimitar os parágrafos, mas percebe a necessidade de usar a vírgula em um caso especial: quando há a repetição de uma ação.
Outra atividade desenvolvida foi a produção de um texto com base no poema “A porta” de Vinicius de Moraes. Após a leitura, discutiu-se a possibilidade de objetos falarem relatando sua vivência e cotidiano, suas vaidades de objetos e suas atividades. Nota-se que o ponto final aparece no fim de grandes rupturas. Depois de alguns depoimentos orais, solicitou-se a escolha de um objeto e produção escrita de um texto.
A Porta

Sou feita de madeira Madeira, matéria morta
Não há coisa no mundo
mais viva do que uma porta.
Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetão
Pra passar o capitão
Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Eu fecho tudo no mundo
Só vivo aberta no céu.
Eis o texto do aluno:
O castelo falante
– Oi, eu sou uma chícara bem bonita, branca e com flores rosas. Eu fasso parte de um conjunto de chá, tem o bule que é a mamãe e as outras chícaras são meus irmãos. Eu durmo numa prateleira de madeira, esta prateleira é dentro da cozinha de um grande castelo.
– O castelo é todo branco com bandeiras vermelhas, nas bandeiras está escrito “castelo falante”, porque tudo que há dentro dele fala.
– Todos os móveis do castelo são meus amigos, vou te apresentar alguns: o armário que é rocho, a pia é cinza, a cama é de madeira com lençol laranja, a secadeira é branca. Agora é a vez dos objetos: a vela se chama Lio, a lamparina Fiu, a lâmpada Quimi e muitas outras coisas existem no castelo. Claro que tem as árvores, a grama, o teto, o chão, até o castelo fala.
– Nossa! eu falei tanto sobre o castelo que esqueci de dizer o meu nome, e ele é... Fibi
– Fibi, disse a mãe bule
– Já vou mãe.
– Agora eu tenho que ir, tenha um bom dia.


Observando o uso do travessão na redação do aluno, percebe-se que a noção que ele tem do uso do sinal é a de que esse serve para demarcar a fala e, como se trata de um relato da xícara, a presença do travessão é explicável. Na discussão em sala, a maioria da turma argumentou contra a presença do sinal ao longo do texto, dizendo que não se tratava de um diálogo, por isso o travessão só deveria aparecer na conversa entre o bule e a xícara, em que há realmente alternância do turno de fala. O aluno reescreveu o texto fazendo as alterações apontadas pelo grupo.
O castelo falante (reescritura)

Oi, eu sou uma xícara bem bonita, branca e com flores rosas. Eu faço parte de um conjunto de chá. Tem o bule, que é a mamãe, e as outras xícaras são meus irmãos. Eu durmo numa prateleira de madeira, esta prateleira é dentro da cozinha de um grande castelo.
O castelo é todo branco com bandeiras vermelhas. Nas bandeiras está escrito “castelo falante”, porque tudo que há dentro dele fala.
Todos os móveis do castelo são meus amigos, vou te apresentar alguns: o armário que é roxo, a pia é cinza, a cama é de madeira com lençol laranja, a secadeira é branca. Agora é a vez dos objetos: a vela se chama Lio, a lamparina Fiu, a lâmpada Quimi e muitas outras coisas existem no castelo. Claro que tem as árvores, a grama, o teto, o chão, até o castelo fala.
Nossa! Eu falei tanto sobre o castelo que esqueci de dizer o meu nome, e ele é... Fibi
– Fibi, disse a mãe bule.
– Já vou, mãe.
Agora eu tenho que ir, tenha um bom dia.

É bom lembrar que durante todo o trabalho com os alunos, a reescritura dos textos foi solicitada, mas antes cada um recebia uma cópia do texto do colega e a correção era feita pelo grupo. Dessa forma, desenvolveu-se o senso crítico em relação a seus próprios textos e eles passaram a compreender o uso da pontuação.

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